Hoje eu me vi negra.
Lembro que, há pouco tempo, vi em um relato de uma
companheira de luta os dizeres de como descobrir-se negro é dolorido. Já me
colocava como negra, porque entendia essa condição racionalmente. Mas não consegui,
nessa época, compreender essa dor.
Mas hoje compreendi.
Não foi com nenhuma situação nova, mas com memórias
suscitadas por uma fala. Foi o relato de uma pessoa branca, aliada de nossa luta,
que descrevia os privilégios de sua branquitude[1].
Foi ao ouvir seu relato que percebi coisas que não havia
nunca percebido sobre mim mesma, sobre minha história, mas, mais precisamente,
sobre as pessoas que me cercaram durante boa parte de minha vida. Diversas
memórias, de repente, vieram à tona, mas com significados completamente
diferentes do que tinham antes.
Não fui socializada majoritariamente entre pessoas negras,
mas entre brancos. Nas escolas, que foram particulares ao longo de toda a minha
vida, apesar de alguns colegas negros, sempre foram quase todos brancos. Meu
pai tem uma origem de classe média; e a família de minha mãe, apesar de ter
sido muito pobre, foi uma das poucas que teve sorte para conseguir dar a seus
filhos uma vida melhor. Ambos, meu pai e minha mãe, fizeram curso superior. Nasci
em um meio de classe média que, na cidade pequena, tinha bastante contato com a
burguesia local.
Sempre foi um meio em que não me sentia aceita. Eu era um
menino bastante isolado e que, mesmo com grandes e conscientes esforços em me
enturmar, sempre era de alguma forma colocado de lado.[2]
Desse meio eram as pessoas que eu conhecia.
Lembro que, ao me inscrever no vestibular, eu tinha que
preencher o campo de autodeclaração racial. Não sabia o que colocar. Nunca
havia pensado sobre. Nunca.
Perguntei para minha mãe como ela achava que eu devia
preencher.
Não me lembro exatamente como ela respondeu, mas a
orientação era para que eu colocasse “branco”.
Minha mãe sempre foi conhecida como “Preta”. Suas irmãs, em
certo momento da vida e por algumas pessoas, eram chamadas de “Batman”, “Pneu”,
etc.
Ela é da mesma cor que eu.
No momento em que preenchi a inscrição do vestibular, ela me
ensinou que eu era branca. Nos meus documentos, constava que eu era branca. E,
quando o IBGE me visitou durante o censo eu, de forma já envergonhada, me
declarei “branco”.
Ela me ensinou que eu era branca. Mas, ao mesmo tempo, me
criou para ser preto.
Lembro, em diversas situações, de pessoas que conviviam
comigo se preocuparem por precisarem de seus documentos e não os terem em mãos.
Isso nunca aconteceu comigo. Essa lembrança pode parecer banal a princípio, mas
foi a partir dela que compreendi finalmente como o mundo sempre me tratou
diferente e como sempre fui preparada para receber esse tratamento.
Eu sempre achei absurdo alguém sair de casa sem os
documentos (e isso é forte em mim até hoje). Minha mãe sempre me ensinou a
andar com eles. Não apenas os documentos de identificação, mas carteirinha de
escola ou qualquer outra que pudesse trazer algum reconhecimento social.
Nunca havia notado essa diferença até hoje. Mas, enquanto
isso não era uma preocupação para os pais dos meus colegas, minha mãe estava me
preparando para enfrentar o mundo como uma pessoa negra.
Sempre tinha que ter o documento. Tinha que tomar cuidado
com a polícia. Se a polícia parar, ficar tranqüilo, obedecer, mostrar os
documentos e não reagir a nada. E era claro que a polícia ia me parar. Então nesse
momento diversas memórias se sobrepõem, com diversos tipos de abusos policiais
completamente infundados que já sofri[3].
Policiais que reviraram minhas bolsas, que me levaram para salas isoladas e me
fizeram tirar a roupa para me revistar, que fizeram todo tipo de abuso moral,
que pularam do carro em movimento com a arma apontada para mim.
Lembro de uma moça, negra, da periferia, que foi minha
namorada quando eu era bem jovem. Ela me disse como odiava a polícia e
perguntou o que eu achava. Eu não sabia o que responder naquela situação. Não
tinha, conscientemente, um juízo formado sobre a polícia. Muito provavelmente
influência de meu meio social. Mas essa memória vem junto a diversas outras,
que mostram como o medo da polícia e de seus abusos sempre foi uma presença
muito forte na minha vida, ainda que eu não pudesse ainda racionalizar esse
medo e transformá-lo em uma opinião.
Há alguns meses venho questionando algumas outras memórias, pensando
se teriam algo a ver com racismo. Eu muitas vezes era aquele que não era aceito
nos círculos de amizade na escola. Era aquele que era feio, por quem as pessoas
não poderiam se interessar afetivamente. Nos momentos de maior solidão e
isolamento, as pessoas mais próximas eram aquelas poucas negras que estavam nos
mesmos espaços. Trazia todas essas memórias, mas tinha receio de afirmar que
essas situações passavam pela questão do racismo.
Sempre tive apelidos por causa do meu cabelo, e não faltaram
pessoas me dizendo que também ele era feio. Mas ainda questionava e ficava
insegura sobre se era mesmo racismo aquilo que me atingia.
Hoje foi diferente. Quando ouvi dessa pessoa branca, aliada
de nossa luta, a experiência de que brancos não precisavam educar seus filhos
para levar sempre consigo seus documentos, que não precisavam educar seus
filhos para lidar com abordagens policiais violentas, essas memórias todas
vieram à tona de forma imperiosa. Vieram novamente, mas de forma completamente
diferente. Compreender como minha educação e minha formação individual é tão
explicitamente diferente da formação daquelas pessoas que sempre foram minhas
colegas me fez sentir tudo isso de forma totalmente nova.
Eu não era como eles. Ser excluído e isolado não era uma
arbitrariedade; era nada mais que um detalhe que afirmava essa condição: eu não
era como eles. Agora as coisas fazem mais sentido.
Descobrir-se negra é dolorido.
Agora eu compreendo como é essa dor.
Chorei durante a fala que disparou em mim todas essas
lembranças. Chorei porque agora faziam sentido. E continuei chorando quando se
mudou de assunto. E, durante o dia, em diversos momentos, me pus novamente a
chorar, de uma dor que eu ainda não sei bem descrever e nem sei bem como lidar.
Mas sei que, de alguma forma, fiquei mais forte.
Sou negra.
[1] E
nesse momento descubro que o Word conhece a palavra negritude, mas não
branquitude. Porque o normal é branco, e não se precisa de um termo para isso.
[2]
Relutei em colocar essa nota, pois ela atesta o fato de travestis não terem o
direito à memória, mas preferi explicar, uma vez que não estamos ainda no mundo
em que queremos. Tenho memórias em que a primeira pessoa é masculina, e outras
em que ela é feminina.
[3] E
penso como essas situações todas de abuso ainda foram muito mais leves do que
aqueles que meus irmãos da periferia sofrem.
Choro também diante dessa reflexão. Sempre soube que éramos diferentes deles, mas a vida, a sociedade, a ideologia...sei lá, me fizeram acreditar que estudando nas "melhores" escolas vcs seriam mais felizes, teriam mais oportunidades para lidar com este mundo. Tomara não tivesse tido dinheiro para comprar o "sonho" do melhor possível. Talvez fossemos mais felizes...minha filha negra.
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