terça-feira, 26 de maio de 2015

Sobre ciúmes em uma relação aberta

Tenho relacionamentos poli há quase dez anos, entre eles uma relação de sete anos com um "casamento" de um ano. E acho que, para a gente saber lidar bem com esse tipo de relação, é importante não cair em um discurso moralizante que há dentro do poliamor, de que as relações e os sentimentos devem se dar dentro de um determinado molde. Sentir ciúmes é completamente normal no mundo em que vivemos. Nós somos criadas e ensinadas a isso a vida toda, e não é por um ato de vontade que vamos parar de senti-lo. É algo que está dentro de nós e que só pode mudar a partir de experiências genuínas de relações de companheirismo e cumplicidade.
Sentir ciúme não é algo atrasado ou retrógrado em si, e não deve despertar culpa. É um sentimento tão legítimo como qualquer outro e as pessoas que querem trabalhá-lo para mudá-lo devem fazer isso respeitando a si mesmas, respeitando seu espaço e seu tempo.
Mas, quando se está em uma relação, esse respeito tem que ser compartilhado pelo companheiro também. Tem que existir algum nível de cumplicidade e de responsabilidade sobre os sentimentos daqueles com quem se relaciona. Não faz sentido uma relação aberta em que o homem faz o que quer sem se importar em como aquilo repercute nos sentimentos de sua companheira. Esse tipo de relação “poliamorista” é tão atrasada como qualquer relação tradicional.
O ciúme é algo que acontece. Em todas as relações que tive, diversas vezes e por diversos motivos surgiram ciúmes, da minha parte e da parte de minhas companheiras e companheiros. E é algo que podemos conversar sobre e pensar em o que fazer para que fiquemos bem (aqui parto do pressuposto que as relações devem servir para nos fazer bem, para nos fazer felizes; e não simplesmente seguir um modelo ideal, seja mono ou poli). Numa relação, principalmente uma relação não mono, onde estamos construindo algo novo, que não há um modelo já socialmente estabelecido, é fundamental que haja espaço e companheirismo para que se coloque o que se sente, o que alegra e o que machuca. É preciso haver espaço, inclusive, para que se recuem em propostas de não-monogamia em alguns momentos se essas propostas causarem algum desconforto que seja muito difícil lidar (lembrando que o objetivo é ser feliz, e não construir uma relação poli ideal).
Na maioria de minhas relações, tive um acordo de que ficaríamos com quem quiséssemos, quando quiséssemos. Mas diversas vezes, antes de ficar com alguém, já perguntei a minhas companheiras como seria para elas se eu o fizesse, e muitas vezes deixaria de fazê-lo se fosse machuca-las. Da mesma forma, já coloquei para elas coisas que me machucaram em função dos ciúmes que eu sentia. E é importante que seja possível conversar e chegar a um ponto de consenso, sobre o que seria melhor para ambas. Algumas vezes podemos assumir que vai rolar a outra relação e que nos ajudaremos a lidar com o ciúmes uma da outra; outras vezes assumir que seria melhor que essa outra relação não role. É uma questão de cuidado. E nem sempre conseguimos conversar e elaborar isso da melhor forma possível todas as vezes; mas acho que vale a pena ter disposição e ir aprendendo a ter esse tipo de diálogo.
E só essa cumplicidade e abertura para lidar com os sentimentos de forma bastante sincera foi o que me ajudou a lidar com os ciúmes e avançar em relações não mono. Se se estabelece uma relação em que uma pessoa não sabe o que a outra sente, em que não há esse companheirismo para que se possa chegar para o outro e perguntar de forma aberta qual a relação dele com aquela outra pessoa que ele está ficando, se as coisas ficam meio incertas e inseguras, acho bastante provável que se esteja estabelecendo uma relação opressora.
Principalmente em uma relação entre homem e mulher, e mais ainda em uma relação não mono, é obrigação do homem compreender e proporcionar um ambiente de segurança à mulher. Caso contrário, se reproduzirá, ainda que de uma forma um pouco diferente, o velho machismo que há nas relações tradicionais, que coloca a mulher em uma posição de submissão por se sentir insegura na relação.
É importante que se saiba (e principalmente nós mulheres) que sentir ciúmes, ficar insegura e todas essas coisas não são nossa culpa, não são coisas de que nós temos que ter vergonha, e não são coisas que temos que resolver sozinhas. Esses elementos todos acontecem na relação e é necessário que existam espaços para que se lide com eles de forma companheira, claro que também respeitando as individualidades de cada um quando for necessário. Ciúmes, assim como todo sentimento, é algo que se conversa sobre em uma relação íntima saudável.
Tem muitas coisas nos nossos sentimentos que podemos mudar com experiências. Como eu disse, já senti muito ciúme, e a forma como sinto ciúmes mudou muito desde que comecei a ter relações não mono (e essa mudança foi uma experiência fantástica, que ainda vou escrever especificamente sobre). Em função de minhas experiências de construir conjuntamente a vida com algumas pessoas e de compartilhar sentimentos bons e ruins, algumas situações que me dariam muito ciúme e que me fariam ficar muito mal hoje são bastante prazerosas. Ver minha companheira feliz com uma outra namorada ou namorado que a faça feliz é algo que às vezes ainda desperta algum incômodo, mas, de forma geral, me dá sentimentos muito bons e felizes.

sábado, 9 de maio de 2015

Da solidão da travesti que gosta de meninas

(TW: solidão trans*)



Hoje acordei e não sabia bem onde estava
Vi que meu corpo estava em minha cama
        Mas eu não estava lá.
Eu então vi que eu não estava em lugar nenhum.

Sempre brinquei tanto com o desejo
O desejo me era amigo, íntimo, companheiro
E agora
        Desejo, para mim, é nada mais que uma lembrança longínqua
Me sinto assexuada em meio à multidão libidinosa

Quem é que iria me querer?
Não tenho aquele masculino que atrai as moças que gostam de meninos
Também não há em mim o feminino que desejam as que gostam de meninas

--

Cansada de ser eu...
Aliás, quem sou eu, quem poderei ser?
        Se não posso ser senão junto
        Se minha história é a história de meus amores
        Se me encontro em cada encontro em meu caminho
Quem poderei ser se sou só?
Fico vazia de mim.

Eu, que sempre esbanjei libido
Me castro diante do desejo dos outros
        Que afirmam, com razão, como sou linda
        E maravilhosa, e até sexy
Mas é um sexy que só desperta desejo nos outros
        E esses outros ainda não encontrei

        (O desejo não vem senão daqueles que aprenderam, vez ou outra na vida,
        Que só sou objeto superficial e carnal,
        Mas não digna de uma relação, de afeto, de amor)

Eu, que sempre tive relações tão próximas,
        Que sempre tive trocas profundas
        Com todes que passaram por minha vida
        Eu, que amo tanto amar profundamente,
Encontro-me de repente procurando sexo
        Só sexo, sem sentimento, sem troca, sem nada. Só para poder sentir-me um pouco desejada.

E vejo-me fechando ao mundo
Não brincando como sempre brinquei
Não amando como sempre amei
Não sou mais eu
        Perco minha libido
        Perco meus encontros
        Mais uma vez na vida, mal posso conversar sem medo

Esse medo me domina
        Fico só. Com medo. Um medo só.
        E de repente o que fica é só o medo.

--
 
        Não queria ter dormido
        Não queria ter acordado.
O medo da vida agora se mistura com quem eu sou.
Meu gênero se confunde com a solidão.

Queria ainda não saber onde estou. Mas agora vejo bem.
        Estou aqui.