domingo, 25 de outubro de 2015

Redação do ENEM: uma pequena reflexão sobre as reações

Estava vendo algumas das reações negativas ao tema da redação do ENEM desse ano. De forma geral, a única reclamação concreta que aparece nelas é que a prova traz "uma doutrinação de uma ideia única" e que nela as pessoas "não podiam expressar sua opinião, mas tinham que obrigatoriamente seguir as ideias da esquerda".

Isso nos permite pensar algo importante sobre as opiniões reais dessas pessoas.

Na prova você podia expressar diversas opiniões.
Você podia, sim, expressar uma opinião de direita. Há diversas posições na direita que se propõem a debater a violência contra a mulher(1). Aliás, em todo o espectro político há pessoas que debatem esse tema.
Você podia, sim, expressar uma opinião que discordasse do governo(2).

Você só não podia ser contra os direitos humanos. Você não podia defender a violência, mas tinha que partir do pressuposto que ela não é desejável.
Você não podia defender a discriminação ou a submissão violenta de uma pessoa a outra. Não podia defender que as pessoas não tivessem direitos iguais.
Você só não podia defender qualquer tipo de abuso, tirania, opressão.

Se o tema da redação do ENEM impediu alguém de manifestar sua opinião, não é porque o tema foi estreito e direcionado a um certo pensamento doutrinante.
Se o tema da redação do ENEM impediu alguém de manifestar sua opinião, é porque essa opinião, de alguma forma, defende a violência, defende a desigualdade, defende que os direitos não devem ser os mesmos para todas as pessoas.

Nesse caso, ou seja, se a sua opinião é uma dessas que zeraria o ENEM por não se adequar aos direitos humanos, isso não significa apenas que você é de direita. Significa que você está disposto a construir um mundo violento, uma sociedade segregada e discriminadora. Significa que você reproduz as ideologias que mais coagiram, torturaram e mataram na história da humanidade!

Nesse caso, que bom que essa opinião não pôde ser expressa. Desejo que os direitos mais básicos de todas as pessoas sejam vez mais garantidos e que, portanto, esse tipo de opinião tenha cada vez menos voz.


Notas:

(1) Reafirmo isso, ainda que, na minha opinião, nenhuma ideia de direita possa combater de forma eficiente a violência contra a mulher.
(2) Mesmo porque esse governo tem sido um fracasso no combate a esse tipo de violência.

sábado, 26 de setembro de 2015

A família para eles

Eles aprovaram que família
        É só aquela formada por homem e mulher

Mas nós sabemos que, para eles,
        Família é muito mais do que isso

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Família, para eles, é formada por homem, mulher e outras mulheres, amantes do homem.

Família, para eles, é onde o homem manda e a mulher cala, adorna e procria.

Família, para eles, é aquela em que, se uma filha é estuprada, vão chamá-la de vagabunda e colocá-la de castigo.
E obrigá-la a conviver o resto da vida com um filho fruto da violência.

Família, para eles, é aquela em que, se um filho for gay, vai apanhar até a morte.

Família, para eles, ensina a seus filhos que eles não têm querer, criando pessoas submissas e defensoras da ordem. Com violência, essa família mata todos os sonhos das crianças, convencendo-as de que nesse mundo não se pode ser feliz.

Família, para eles, é aquela que distingue as mulheres brancas, que são pra casar, e as negras, que são pra comer.

Família, para eles, é o lugar onde o homem pode praticar qualquer tipo de violência contra a mulher e os filhos.
E ninguém pode meter a colher.

Na família deles, algumas mulheres só não são estupradas porque não merecem.
Mas, para eles, sempre tem as que merecem.

Família, para eles, são laços baseados no medo, na violência, no abuso, na humilhação.
Nunca no amor.

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A família deles, a família do medo, ganhou na câmara.
Mas a nossa, a família do amor, ainda vai ganhar no mundo todo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Mesa sobre a questão T* na educação

Hoje falei em uma mesa sobre a questão T* na educação, junto com Camila Godoi, Luís Saraiva, Allan Marrone Marcolino e Vera Paiva. A mesa faz parte da Semana de Psicologia e Educação.

Falei sobre a experiência transfobia institucional no IP e na USP e também sobre a transfobia no conhecimento da Psicologia. Relacionei em alguns momentos a transfobia institucional com o racismo e o machismo.

Para quem quiser ver o vídeo completo, segue o link abaixo. Vale a pena ver todas as f...alas, que tratam o tema sob diferentes aspectos. Muitas coisas interessantes.

sábado, 29 de agosto de 2015

Quando me descobri negra

Hoje pude juntar diversas memórias e fatos que aconteceram em minha vida. Hoje pude entendê-los todos como nunca antes havia entendido.

Hoje eu me vi negra.

Lembro que, há pouco tempo, vi em um relato de uma companheira de luta os dizeres de como descobrir-se negro é dolorido. Já me colocava como negra, porque entendia essa condição racionalmente. Mas não consegui, nessa época, compreender essa dor.

Mas hoje compreendi.

Não foi com nenhuma situação nova, mas com memórias suscitadas por uma fala. Foi o relato de uma pessoa branca, aliada de nossa luta, que descrevia os privilégios de sua branquitude[1].

Foi ao ouvir seu relato que percebi coisas que não havia nunca percebido sobre mim mesma, sobre minha história, mas, mais precisamente, sobre as pessoas que me cercaram durante boa parte de minha vida. Diversas memórias, de repente, vieram à tona, mas com significados completamente diferentes do que tinham antes.

Não fui socializada majoritariamente entre pessoas negras, mas entre brancos. Nas escolas, que foram particulares ao longo de toda a minha vida, apesar de alguns colegas negros, sempre foram quase todos brancos. Meu pai tem uma origem de classe média; e a família de minha mãe, apesar de ter sido muito pobre, foi uma das poucas que teve sorte para conseguir dar a seus filhos uma vida melhor. Ambos, meu pai e minha mãe, fizeram curso superior. Nasci em um meio de classe média que, na cidade pequena, tinha bastante contato com a burguesia local.

Sempre foi um meio em que não me sentia aceita. Eu era um menino bastante isolado e que, mesmo com grandes e conscientes esforços em me enturmar, sempre era de alguma forma colocado de lado.[2]

Desse meio eram as pessoas que eu conhecia.

Lembro que, ao me inscrever no vestibular, eu tinha que preencher o campo de autodeclaração racial. Não sabia o que colocar. Nunca havia pensado sobre. Nunca.

Perguntei para minha mãe como ela achava que eu devia preencher.

Não me lembro exatamente como ela respondeu, mas a orientação era para que eu colocasse “branco”.

Minha mãe sempre foi conhecida como “Preta”. Suas irmãs, em certo momento da vida e por algumas pessoas, eram chamadas de “Batman”, “Pneu”, etc.

Ela é da mesma cor que eu.

No momento em que preenchi a inscrição do vestibular, ela me ensinou que eu era branca. Nos meus documentos, constava que eu era branca. E, quando o IBGE me visitou durante o censo eu, de forma já envergonhada, me declarei “branco”.

Ela me ensinou que eu era branca. Mas, ao mesmo tempo, me criou para ser preto.

Lembro, em diversas situações, de pessoas que conviviam comigo se preocuparem por precisarem de seus documentos e não os terem em mãos. Isso nunca aconteceu comigo. Essa lembrança pode parecer banal a princípio, mas foi a partir dela que compreendi finalmente como o mundo sempre me tratou diferente e como sempre fui preparada para receber esse tratamento.

Eu sempre achei absurdo alguém sair de casa sem os documentos (e isso é forte em mim até hoje). Minha mãe sempre me ensinou a andar com eles. Não apenas os documentos de identificação, mas carteirinha de escola ou qualquer outra que pudesse trazer algum reconhecimento social.

Nunca havia notado essa diferença até hoje. Mas, enquanto isso não era uma preocupação para os pais dos meus colegas, minha mãe estava me preparando para enfrentar o mundo como uma pessoa negra.

Sempre tinha que ter o documento. Tinha que tomar cuidado com a polícia. Se a polícia parar, ficar tranqüilo, obedecer, mostrar os documentos e não reagir a nada. E era claro que a polícia ia me parar. Então nesse momento diversas memórias se sobrepõem, com diversos tipos de abusos policiais completamente infundados que já sofri[3]. Policiais que reviraram minhas bolsas, que me levaram para salas isoladas e me fizeram tirar a roupa para me revistar, que fizeram todo tipo de abuso moral, que pularam do carro em movimento com a arma apontada para mim.

Lembro de uma moça, negra, da periferia, que foi minha namorada quando eu era bem jovem. Ela me disse como odiava a polícia e perguntou o que eu achava. Eu não sabia o que responder naquela situação. Não tinha, conscientemente, um juízo formado sobre a polícia. Muito provavelmente influência de meu meio social. Mas essa memória vem junto a diversas outras, que mostram como o medo da polícia e de seus abusos sempre foi uma presença muito forte na minha vida, ainda que eu não pudesse ainda racionalizar esse medo e transformá-lo em uma opinião.

Há alguns meses venho questionando algumas outras memórias, pensando se teriam algo a ver com racismo. Eu muitas vezes era aquele que não era aceito nos círculos de amizade na escola. Era aquele que era feio, por quem as pessoas não poderiam se interessar afetivamente. Nos momentos de maior solidão e isolamento, as pessoas mais próximas eram aquelas poucas negras que estavam nos mesmos espaços. Trazia todas essas memórias, mas tinha receio de afirmar que essas situações passavam pela questão do racismo.

Sempre tive apelidos por causa do meu cabelo, e não faltaram pessoas me dizendo que também ele era feio. Mas ainda questionava e ficava insegura sobre se era mesmo racismo aquilo que me atingia.

Hoje foi diferente. Quando ouvi dessa pessoa branca, aliada de nossa luta, a experiência de que brancos não precisavam educar seus filhos para levar sempre consigo seus documentos, que não precisavam educar seus filhos para lidar com abordagens policiais violentas, essas memórias todas vieram à tona de forma imperiosa. Vieram novamente, mas de forma completamente diferente. Compreender como minha educação e minha formação individual é tão explicitamente diferente da formação daquelas pessoas que sempre foram minhas colegas me fez sentir tudo isso de forma totalmente nova.

Eu não era como eles. Ser excluído e isolado não era uma arbitrariedade; era nada mais que um detalhe que afirmava essa condição: eu não era como eles. Agora as coisas fazem mais sentido.

Descobrir-se negra é dolorido.

Agora eu compreendo como é essa dor.

Chorei durante a fala que disparou em mim todas essas lembranças. Chorei porque agora faziam sentido. E continuei chorando quando se mudou de assunto. E, durante o dia, em diversos momentos, me pus novamente a chorar, de uma dor que eu ainda não sei bem descrever e nem sei bem como lidar.

Mas sei que, de alguma forma, fiquei mais forte.

Sou negra.



[1] E nesse momento descubro que o Word conhece a palavra negritude, mas não branquitude. Porque o normal é branco, e não se precisa de um termo para isso.
[2] Relutei em colocar essa nota, pois ela atesta o fato de travestis não terem o direito à memória, mas preferi explicar, uma vez que não estamos ainda no mundo em que queremos. Tenho memórias em que a primeira pessoa é masculina, e outras em que ela é feminina.
[3] E penso como essas situações todas de abuso ainda foram muito mais leves do que aqueles que meus irmãos da periferia sofrem.

domingo, 23 de agosto de 2015

Apropriação cultural sob uma análise marxista


(Esta contribuição ao debate foi feita inicialmente como crítica a outro texto, intitulado “Apropriação cultural e marxismo”. Para quem tiver interesse, o texto em questão está disponível em http://www.juventudemarxista.com/2015/07/apropriacao-cultural-e-marxismo.html e também reproduzido na íntegra logo abaixo deste.)

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Escrevo esse texto para pensar sobre a questão da apropriação cultural, que tem se debatido muito no movimento negro com o qual tenho tido contato. É uma resposta ao texto do companheiro da Juventude Marxista sobre o mesmo tema. Apesar de concordar que se deve criticar, de um ponto de vista marxista, alguns conceitos de certas correntes do movimento que desconsideram a totalidade social da luta de classes, também é importante combater um marxismo vulgar e dogmático que não ajuda a esclarecer os problemas da relação entre cultura, raça e classe no Brasil hoje.

Pretendo, portanto, fazer uma análise da questão da apropriação cultural, explicitando como o método marxista, usado corretamente, é a ferramenta para compreender a questão. Não vou entrar em todos os temas tratados no texto em questão. Pretendo apenas apontar os erros em seus pressupostos mais básicos naquilo que diz respeito ao tema da apropriação cultural, sem os quais a maior parte das ideias centrais do texto cairia.

 

Soma ou relações dialéticas



Em primeiro lugar, no texto está implícita uma concepção de que diferentes fatores sociais (como preconceitos em geral, racismo, opressão de classe, etc) têm origens em instâncias diferentes da vida social, independentes entre si, e, em alguns momentos, podem ou não se somar. Essa concepção aparece, por exemplo, quando ele fala em “preconceito contra os dreads somado ao RACISMO”. Ora, o marxismo é a ciência do concreto, ou seja, da totalidade, o que significa que não pensamos a realidade fragmentada dessa forma, como tanto o positivismo quanto a pós-modernidade pensam. Não podemos pensar a questão de classe, o racismo e o “preconceito contra os dreads” como três coisas separadas que podem ou não se somar. Precisamos fazer uma análise de como, em sua essência, essas três coisas se relacionam.

Para isso, em primeiro lugar, devemos rejeitar a máxima pós-moderna (que também aparece no referido texto) de que a sociedade tem “preconceitos contra o diferente”. Não é a diferença que cria os preconceitos. Se fosse assim, como se explicaria que de algumas “diferenças” surgem preconceitos e de outras não? Como se explicaria que o preconceito que surge de algumas “diferenças” é diferente do preconceito surgido de outras “diferenças”? Não podemos dizer, por exemplo, que a diferença entre brancos e negros crie o mesmo efeito que a diferença entre homens e mulheres ou entre destros e canhotos. O efeito que cada uma dessas “diferenças” vai acarretar não tem a ver com o fato de serem “diferenças” em si, mas tem relação com como cada uma delas se enquadra no todo da realidade social, ou seja, qual o papel de cada uma delas na luta de classes. Só a partir daí podemos pensar como surgem os preconceitos.

O “preconceito contra os dreads”, portanto, precisa ser pensado em sua origem ontológica histórico-social. Acontece que o capitalismo, de diferentes formas em diferentes momentos, utilizou uma suposta diferença entre raças para impor e fortalecer sua dominação no mundo todo[1]. No Brasil, obviamente essa estratégia tomou uma forma específica. O racismo aqui tem como um de seus aspectos fortes a desqualificação indireta do negro, que não fala explicitamente do indivíduo negro, mas ataca todos aqueles elementos que compõem sua vida e sua cultura. Quando dizem que o funk é “música ruim” ou que o RAP é “música de bandido”, quando dizem que sacrifícios de animais em rituais religiosos é uma crueldade, quando dizem que cabelo crespo e nariz largo são feios, quando colocam que as favelas são essencialmente violentas – em todas essas suposições, criadas e difundidas por uma classe dominante para garantir seu poder, se esconde o racismo. O racismo está, de fato, na essência de todas elas. Da mesma forma, o “preconceito contra os dreads” não pode se somar ao racismo porque ele é parte do racismo! A identificação do turbante com algo demoníaco não pode se somar ao racismo porque é parte do racismo!

De fato, uma pessoa branca pode sofrer preconceito em uma entrevista de emprego se usar dreads. Esse preconceito não tem uma origem separada do racismo: ele só existe porque o dread é um símbolo negro, e é por isso identificado com coisas negativas, como sujeira, irresponsabilidade, etc. Podemos aqui repetir o que já dissemos anteriormente para completar o raciocínio: a inferiorização dos símbolos negros se insere na luta de classes como uma estratégia da classe dominante para garantir sua dominação.

O absurdo em falar da diferença entre um negro ou um branco usando tais símbolos só pode aparecer quando se considera que os “preconceitos” têm origens independentes, não relacionadas com a totalidade da luta de classes. Enquanto que, para uma mulher branca que usa turbante, aparece certo preconceito derivado de ela usar um símbolo negro, para a mulher negra o turbante nada mais é que uma confirmação daquilo que o racismo coloca em sua essência: macumbeira, demoníaca. Da mesma forma, enquanto que em um homem branco os dreads podem remeter a ideias de sujeira e de preguiça, em um homem negro eles estariam apenas confirmando aquilo que o racismo vê como sua essência. Essa é a diferença. E, claramente, na prática da vida social, isso é uma diferença enorme! Um jovem visto como essencialmente “limpinho” em uma fase rebelde é bonitinho, muito diferente de um visto como essencialmente sujo.

E mesmo no RAP, é clara a diferença que vemos entre o uso dessa forma de resistência por um branco ou por um negro. É só pensarmos no contraste entre Gabriel O Pensador e Racionais. O primeiro é tido, por muitos setores sociais, como um crítico; os segundos continuam fazendo, no senso comum, “música de bandido”.


A apropriação cultural

 

Sobre a questão da apropriação, também é um problema como o texto do companheiro da Juventude Marxista separa a “apropriação de TODAS AS CULTURAS DO MUNDO pelo CAPITALISMO” da apropriação de uma cultura particular em um momento particular. Como já dissemos, o marxismo é uma ciência do concreto. Não se pode falar apenas em um conceito geral de apropriação sem compreender como a apropriação se dá em seu contexto específico e qual a relação dessa apropriação com a totalidade histórica específica em que está inserida. É claro que o capitalismo se apropria de todas as culturas do mundo. Mas essa conclusão não ajuda em nada, se não compreendermos as relações concretas em que se inserem as apropriações.

Para abordar esse problema, podemos partir de uma constatação bastante errada do texto em questão, de que a indústria da moda está (ou estava) tentando se apropriar dos dreads e do turbante e falhando. Aqui há dois erros fundamentais: um deles é pensar que a classe dominante, por sua própria vontade, tenta se apropriar de símbolos de luta da classe dominada; outro é uma incompreensão da relação entre ideologia e circulação de mercadorias. Analisemos os dois pontos.

A classe dominante não se esforçaria para se apropriar dos símbolos dos dominados se não fosse forçada a isso pela luta de classes. Para esclarecer a questão da apropriação cultural, vou aqui abrir um parênteses e pensar dois exemplos de apropriação da burguesia, que não são no âmbito cultural, mas que ajudarão a entender alguns mecanismos sociais. Em primeiro lugar, podemos pensar na conquista de um determinado setor de mulheres[2] que não podiam trabalhar e ter autonomia financeira e, a partir de sua organização e luta, passaram a ter esse direito. A classe dominante, a princípio, não ficou satisfeita com isso, e tentou combater esse movimento[3]. Mas, quando essas mulheres tiveram sua vitória e conquistaram o direito de trabalhar fora, tal classe se apropriou de alguma forma de sua conquista e passou a usá-la para superexplorar esse setor social, submetendo-o a jornadas duplas ou triplas, a salários menores, etc. Outro exemplo que pode ser pensado é o processo de luta contra a escravidão. Por muito tempo os negros lutaram por sua liberdade e foram duramente reprimidos pela burguesia da época. Conforme sua luta dava frutos e a escravidão foi sendo minada, a classe dominante passou a tentar influenciar o processo à sua maneira: relegou aos negros uma posição de extrema marginalidade para que se pudesse criar uma ideologia de exército de reserva que permitiria uma superexploração de todos os trabalhadores, negros ou não.

A apropriação daquilo que vem da classe dominada nunca é uma iniciativa espontânea da classe dominante. É sempre resultado de uma luta e, em alguma medida, da imposição da vontade dos setores oprimidos. Com a apropriação cultural não é diferente. É absurdo dizer que a burguesia tenta se apropriar de símbolos como os dreads ou o turbante. Antes, ela é obrigada a tal para se manter no controle das coisas. Sua intenção inicial não é de apropriação, mas de supressão desses símbolos. Ela só se apropria quando, se não o fizesse, teria prejuízos maiores. É a luta dos negros que a empurra a isso. Os diversos símbolos culturais sempre ajudaram na identificação dos oprimidos entre si e na organização para a luta. A roda de capoeira, o RAP, os dreads e as vestimentas do Candomblé, por exemplo, podem cumprir esse papel de formar bases para uma resistência contra a dominação[4], inclusive a dominação de classe. E só por isso a burguesia de apropria desses elementos: para minar a força de organização de certo setor muito importante da classe trabalhadora brasileira.

Mas essa apropriação é malsucedida, como coloca o texto em questão? Não. Daí vem a incompreensão da relação entre ideologia e circulação de mercadorias. A burguesia não necessariamente vende apenas para si mesma, mas pelo contrário: não sobrevive se não for a classe trabalhadora massivamente que compre seus produtos. Ela não vende e lucra apenas com aquilo que a ideologia dominante considera bom. O fato de o turbante ser relacionado com algo demoníaco e os dreads serem alvo de preconceito não são, nem podem ser, provas de que a apropriação “falhou”. Novamente, o sucesso ou falha da apropriação cultural não é algo que se pode analisar em si, mas somente dentro da totalidade social e da luta de classes.

Nessa perspectiva, precisamos nos perguntar: qual o papel dessa apropriação na luta de classes? Esse papel está sendo alcançado ou não?

A apropriação cultural, como vimos, é uma estratégia de defesa dos interesses da classe dominante. Sua intenção é se proteger contra a identificação, organização e luta dos negros. Portanto, o sucesso dessa estratégia pode se medir a partir de quanto conseguem tirar dos diversos elementos sua característica de distinção cultural do povo negro. Mas isso não significa necessariamente tirar desses diversos elementos juízos que serão usados para propagar o racismo velado. O que quero dizer com isso? A venda de dreads ou de turbantes (ou da capoeira, ou do RAP, ou do Funk, etc, etc) como produtos que têm apenas um valor comercial abstrato e que não têm uma história, um significado, que não se identificam com um povo ou com uma cultura determinada – essa venda é o fundamental para que se configure uma apropriação cultural bem sucedida. Isso não significa que as pessoas vão desvincular os dreads dos diversos juízos negativos. E isso configura, em minha opinião, o caráter mais perverso de tal apropriação: vendem-se tais produtos para as mesmas pessoas que já o usavam antes, para os negros, mas tiram deles seu caráter de identificação cultural e de resistência, mantendo seus estigmas. O RAP e o Funk continuam sendo vendidos majoritariamente para a juventude negra e periférica, e continuam sendo consideradas “música de bandido” ou “música ruim”, mas agora têm suas letras controladas rigorosamente por um mercado cultural comandado por brancos.  A capoeira continua sendo vista como “malandragem”[5] e os dreads continuam sendo considerados “sujos”, mas agora não identificam mais a cultura negra, mas são “patrimônio de todos” em um lugar onde supostamente não existem diferenças raciais por conta da miscigenação. Mantêm-se os juízos negativos racistas, retira-se o caráter de resistência. Eis o verdadeiro sucesso da apropriação cultural dos símbolos negros.

 

Os movimentos pós-modernos


 
Com tudo o que foi colocado, onde estariam, então, os erros dos movimentos pós-modernos que falam da questão da apropriação cultural? Da mesma forma como critiquei o texto supostamente marxista, as leituras pós-modernas fragmentam a realidade social e tomam a análise dos fragmentos em si, ignorando suas relações essenciais com a totalidade social. A apropriação cultural, tirada do pano de fundo de defesa dos interesses da classe dominante, não pode ser vista senão como uma ação perversa de responsabilidade de alguns indivíduos brancos que, por usarem símbolos culturais negros, estariam enfraquecendo seu conteúdo cultural. Essa análise fragmentária, ao atribuir ao indivíduo o conceito de apropriação cultural, na verdade esvazia esse conceito de seu conteúdo social real: tira da essência do racismo a luta de classes e, por isso, essencializa no indivíduo branco a origem do enfraquecimento da cultura negra. Essa análise ganha credibilidade por fatores muito importantes: empiricamente, são principalmente os indivíduos brancos que encarnam e reproduzem as estratégias racistas de interesse da classe dominante, assim como é por indivíduos brancos que essa classe dominante é formada. Mas, para se compreender o conteúdo concreto da apropriação cultural e do racismo não se pode permanecer no nível empírico apenas: é necessário que se ultrapasse a aparência dada e se encontre a essência desses conceitos no todo social, o que as teorias pós-modernas não fazem. 

Assim, combate-se uma certa apropriação cultural como se se combatesse um fantasma; o sucesso dessa luta se revelaria um fracasso: os símbolos negros não se fortaleceriam, e nem estariam menos apropriados por uma dominação branca se os indivíduos brancos parassem de usá-los. Um branco usar dreads ou turbante, praticar capoeira ou participar de religiões de matriz africana – nada disso é, em si, essa apropriação cultural de que estamos falando. A apropriação cultural perversa, que tira a identidade do povo negro e enfraquece sua luta, tem sua origem na indústria que vende tais elementos como produtos, esta sim com o poder de tirar deles sua significação cultural. O uso desses produtos está, no sistema em que vivemos, submetido a essa indústria e às diversas ideologias ligadas a ela.

Dessa forma, devemos defender as opções individuais de todas as pessoas[6] de se vestirem da forma como quiserem, e ao mesmo tempo, e algumas vezes inclusive contraditoriamente, combater a indústria que em todo momento incide e molda à sua maneira tais vontades individuais. Esse combate se dá pela reafirmação desses elementos culturais como elementos de resistência dos negros contra a dominação que lhes é imposta. Assim como tanto o racismo quanto a apropriação cultural estão, em sua essência, ligados à estrutura de classes, não se pode combatê-los sem que se intervenha na luta de classes de forma geral. É importante que, dentro dessa luta, os trabalhadores brancos se conscientizem do que significam esses símbolos, de sua história e de sua força organizativa e política para nós, seus companheiros negros, e que essa consciência trazida pela nossa luta, e não a indústria capitalista, determine a forma como cada indivíduo se relacionará com tais símbolos.

Por último, ainda que devamos combater essa apropriação cultural da forma como se dá na sociedade hoje, movida por um interesse de lucro e de manutenção de uma ordem dominadora, exploradora e racista, não podemos transformar isso em uma bandeira contra o contato e troca cultural. Como já foi dito, não é do indivíduo branco e nem simplesmente de uma diferença abstrata entre brancos e negros que vem o racismo. O racismo não é essencial à humanidade e nem essencial ao contato entre diferentes culturas. O racismo é algo que pode se combater e se derrotar historicamente. Em uma sociedade em que for abolida a dominação de classe e em que os juízos e práticas racistas tiverem se tornado passado, não há nenhuma razão para que trabalhadores de diferentes culturas não se beneficiem da troca de conhecimentos, tradições e símbolos uns dos outros. Eis um ponto em que o texto de que falamos está certo em sua intenção – socializar e universalizar toda a cultura já produzida pela humanidade. Porém, como já mostramos, sem tomar concretamente as especificidades de como o capitalismo trata as diferentes culturas dentro da totalidade da luta de classes, não se pode armar a luta dos povos oprimidos para chegar a essa situação de igualdade e socialização.

 

Apêndice 1 – uma pequena contradição



Em grande parte, quando o companheiro da Juventude Marxista fala sobre o RAP, ele faz análises corretas, que não caem nos mesmos erros que a linha principal do texto vinha seguindo. Isso acontece porque ele usa pontos de vista diferentes e analisa aspectos diferentes quando fala, por um lado, dos dreads e dos turbantes e, por outro, do RAP. No primeiro caso, ele analisa a apropriação enquanto uso dos símbolos negros por indivíduos brancos, e o faz a partir de um ponto de vista estético. Não pensa nem a inserção social do turbante e do dread, e nem considera seu aspecto de símbolos culturais e políticos. Quando fala sobre o RAP, faz o oposto. Considera esse estilo em seu caráter político de resistência e não estético, e define a apropriação cultural como algo intrínseco da indústria e não do indivíduo. Isso faz com que a análise sobre o RAP pareça em grande parte correta, porém é falha na medida em que não admite a contradição, exposta acima, de o RAP ter diferentes avaliações conforme feito por um artista branco ou negro. Essa contrariedade de pontos de vista parciais não permite com que se analisem os diversos elementos culturais em sua complexidade e em suas diversas relações com o todo social.


Apêndice 2 – sobre o eurocentrismo do marxismo

 

Por último, sobre a questão de o marxismo ser europeu e não ter validade aqui, obviamente discordo dessa ideia da forma mecânica como é colocada por setores da pós-modernidade, mas acho que o companheiro da Juventude Marxista a contrapôs de forma não marxista porque dogmática. O método da crítica marxista tem sua força principalmente por se aplicar sobre si mesmo. A teoria sempre se constrói dentro de uma prática social concreta e a partir dela. Dentro do marxismo, não se pode manter uma mesma análise quando mudam as situações. Cada novo elemento faz com que seja necessária uma nova compreensão do todo social. A realidade com que lidamos hoje no Brasil, apesar de ter ainda os mesmos elementos fundamentais analisados por Marx (luta de classes, necessidade da revolução, etc), tem diversas diferenças e precisa ser analisada nessas diferenças. Por exemplo, o conceito de apropriação cultural talvez não fosse claramente relevante na análise da luta de classes para a classe trabalhadora européia no meio do século XIX. Porém, como já vimos anteriormente, é bastante relevante na análise da luta de classes no Brasil hoje.
Sobre a pertinência do marxismo, termino com um pequeno diálogo que tive uma vez. A pessoa me disse:
“O marxismo é uma teoria européia que corresponde àquele povo e não a nossa realidade.”
Respondi:
“Análise bastante marxista a sua.”

 

 

Anexo: O texto do companheiro Caio Acioli, ao qual faço a crítica

Apropriação cultural e marxismo


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Caio Acioli
Caio é um jovem, militante do movimento negro. E este texto foi enviado por ele como sua contribuição para o debate. 

Apropriação cultural é o que os racialistas, pan-africanistas e outros segmentos pós-modernos do movimento negro em geral inventaram para terem uso exclusivo sobre suas roupas, "cabelos e acessórios" (sim entre aspas).

É necessário expor essa ideia como divisionista e quinta-coluna dentro da esquerda, considerando que ela é um dos elementos que o pós-modernismo tem em comum com o fascismo (que é o de querer mandar nas vestimentas dos outros).

 Os mesmos que propagam essa ideia são as pessoas que atacaram Mauro Iasi no debate na UERJ em defesa do contra-revolucionário pan-africanista Carlos Moore, o mesmo que no debate alegou que prefere o Barack Obama à Fidel Castro, porque o "Obama é preto e representa os negros", pouco importando se a comunidade afro-americana continua numa situação pior que estava na época do Bush e anteriores, pouco importando  os crimes que esse imperador da burguesia já cometeu contra os  vários outros povos oprimidos da humanidade.

“De acordo com sociólogos e especialistas em estudos das camadas populares na América do Norte, os índices sociais - que incluem emprego, saúde e educação - entre os afrodescendentes norte-americanos são os piores em 25 anos. Por exemplo, um homem negro que não concluiu os estudos tem mais chances de ir para prisão do que conseguir uma vaga no mercado de trabalho. Uma criança negra tem hoje menos chances de ser criada pelos seus pais que um filho de escravos no século XIX. E o dado mais assombroso: há mais negros na prisão atualmente do que escravos nos EUA em 1850, de acordo com estudo da socióloga da Universidade de Ohio, Michelle Alexander.”

Essa é a prova que o fato de o presidente ser negro nada interfere na melhoria de vida dos negros, como no caso de Obama, que apesar de negro não está do lado destes negros oprimidos. Mas, que na verdade coloca-se contra estes, mesmo sendo negro.

Outro ponto que essa categoria de pós-modernos tem em comum com o fascismo é a defesa dos relacionamentos e casamentos mono-raciais, muito similares a supremacistas-brancos que pregam que os homens brancos podem "se divertir" com mulheres negras, mas namorar e casar apenas com brancas.
Outro ponto que deixa bem claro o anti-comunismo desses esquerdistas é que eles negam o marxismo como teoria revolucionária, alegando que se trata de uma "teoria branca e eurocêntrica"... Bem, quem diz isso são as mesmas pessoas que dizem pretender libertar os negros de todo mundo, mas eu não faço ideia de como eles vão fazer isso sem uma teoria revolucionária (leia-se: marxismo)... Sem uma teoria que de fato confronte a raiz de todas as opressões, portanto, a raiz do racismo. Uma teoria revolucionária que ataque os problemas do racismo não apenas em sua superfície, mas também eu seu princípio formador, que é a sociedade de classes.

Até hoje quem mais participou da emancipação da população negra foram os lutadores marxistas (negros e não negros), seja no caso da URSS criminalizando o racismo e dando suporte às guerras de libertação nacionais africanas,seja no lendário Partido Pantera Negra para Autodefesa nos EUA. Enquanto essa condição não mudar continuarei sendo marxista e esse meu texto seguirá tendo sua relevância.

 

 A Apropriação Cultural e os Marxistas Negros.

 

Bem, antes de tudo vamos deixar bem claro que qualquer negro que seja marxista não está preocupado com a forma como determinados grupos sociais está se apropriando de símbolos atribuídos aos negros, seja o penteado dread, ou turbantes. Se há negros marxistas que defendem a noção de “apropriação” é porque não estão baseando-se na teoria filosófica e científica materialista.

Vamos refutar duas frases proferidas como expressão de racismo e que supostamente expressão a dinâmica real do racismo atual:

- "Branco usando dread é bonito e estiloso, preto usando dread é mendigo e sujo"
- "Branca usando turbante é moderna e mente aberta, preta usando dread é macumbeira endemoniada"

Derrubando essas duas mentiras brabas, já se confronta boa parte do que é classificado como "apropriação cultural", e podemos partir pra ÚNICA forma de apropriação cultural que existe de verdade, que é a apropriação de TODAS AS CULTURAS DO MUNDO pelo CAPITALISMO, com o objetivo de serem usadas para fins comerciais, sempre que for interessante para a burguesia, de acordo com cada momento histórico.

Então vamos para o primeiro exemplo, a falácia dos Dreads. Essa questão nos parece simples e óbvia. Parece-nos que essa tendência quer usar a lente racialista para tudo, e por isso, enxergam racismo em tudo, o que muitas vezes acaba confundido, e até mesmo prejudicando num trabalho mais radical de combate ao racismo.

Com um olhar mais atento à realidade perceberemos que desde que os dreads começaram a serem mais usados no Brasil, apesar da indústria da moda TENTAR fazer os dreads virarem moda, eles falharam miseravelmente, porque nenhum branco nunca foi visto como “mais estiloso” que um negro por usar unicamente dos dreads. As pessoas que eventualmente acham os dreads bonitos, muito provavelmente vão achar bonito tanto na cabeça de um negro quanto na cabeça de um branco. E as pessoas que acham feio podem até xingar esse negro no meio da rua, assim como xingariam um usuário branco, a diferença é que o usuário negro poderá ser xingado com termo racistas, enquanto o branco não vai ser xingado de termos racistas.

O problema mesmo está no racismo da sociedade e seus preconceitos contra o diferente, e não na “apropriação” que o branco fez.  Até mesmo porque a “apropriação” dele não salvaria ele de ser xingado em virtude de usar seus dreads. Outras coisas que refutam a falácia dos “brancos roubaram um estilo de cabelos dos negros”, é que nós conhecemos gente branca que usa dread e devido a isso as dificuldades de arrumar emprego aumentam consideravelmente comparados a quando elas não usavam. O mesmo acontece com um negro usuário de dread, a diferença é que esse terá ainda mais dificuldade de conseguir o emprego caso esteja disputando com o usuário branco, por exemplo, mas isso acontecerá porque ele vai ter que enfrentar o preconceito contra os dreads somado ao RACISMO.

Pronto. E por ai cai a falácia de que “brancos usando dreads são bem-vistos”. Eles não são bem vistos, eles também são mal vistos, só que a cor deles nesse caso expressa um atributo a menos de ataque, fazendo com que a discriminação contra eles seja menor.

Mais uma questão é que outros povos começaram a usar os dreads juntos ou ainda antes dos negros, o que pode até causar mal estar entre aqueles que não aceitam esse uso como sendo uma apropriação indevida.

Então vamos para o segundo exemplo, os Turbantes:

A análise materialista a ser utilizada no caso do turbante é bem igual à utilizada no caso dos dreads, só mudamos o objeto de análise. Nesse caso, os racialistas alegam que “brancas usando turbante são vistas como mulheres com muito estilo”.

Será que essas pessoas saem pra rua ou eles ficam o dia inteiro dentro de casa bolando essas teoria e essas idéias? Basta sair na rua que não será difícil ver uma mulher branca sendo “xingada” de coisas como “demônia” “macumbeira”, tal como uma mulher negra receberia o mesmo tipo de inferências, com o objetivo de descriminar e subjugar.

Não podemos afirmar que uma mulher branca será bem vista por usar turbante, pelo motivo de ser branca. A possibilidade de ser mal descriminada, do ponto de vista cultural, será a mesma possibilidade de uma negra.

Como no exemplo dos dreads, a negra usando turbante tem tantas possibilidades de receber uma ofensa quanto a branca, só que pra ser mais preciso o turbante é ainda mais discriminado que o dread, por alguns outros motivos.

Os racialistas alegam que “A indústria da moda está vendendo o turbante como um produto”. Eu tomo a liberdade de modificar essa frase para colocá-la de acordo com a realidade: “A indústria da moda está TENTANDO vender o turbante como um produto”. Pronto, agora sim. E se eles estão tentando ou tentaram fazer isso, eles estão falhando ou JÁ FALHARAM, porque não podemos considerar NA MODA uma peça que quem usa ela é ofendida tão só por usar essa peça. Assim, esse conceito de MODA deve ser repensado. O fato é que o turbante é ainda mais odiado pela sociedade que os dreads.

E quanto às origens do turbante, se sabe bem que quem iniciou o seu uso foram os povos árabes, não os povos negros.

Agora vamos falar sobre a “apropriação cultural” real que o capitalismo faz com TODAS AS CULTURAS DO MUNDO.

O motivo de eu colocar “apropriação cultural” entre aspas, nesse caso, é porque esse termo foi utilizado pelos pós-modernos e nós marxista precisamos inventar outro para não haver confusão, mas por falta de tempo deixaremos para fazer uma distinção mais detalhada e cunhar outro conceito, deixaremos entre aspas mesmo.

Para esse caso real, vamos utilizar o gênero musical que eu escuto desde quando me entendo por gente e tenho muita, mais muita afinidade e conhecimento, que é o RAP.

O RAP se iniciou por volta de 1970, uns dizem que ele surgiu na Jamaica e com o tempo foi “exportado” pra Nova York e outros dizem que ele foi inventado em NY mesmo, mas tudo bem isso não importa agora.

O RAP sempre foi utilizado pelos negros norte-americanos para denunciar todas as opressões que sofriam na sociedade burguesa norte-americana, com o tempo ele se fundiu com os outros 3 elementos (DJ – Break Dance – Grafiti) e os 4 juntos formaram a cultura Hip-Hop, expressão artística legítima e fundamental da periferia contra a opressão capitalista. Talvez a mais importante produção cultural combatente do capitalismo, apesar de incompleta e insuficiente.

Com o passar dos tempos, lá pra 1992-1993, o capitalismo já começou a tentar se apropriar do Hip-Hop para minar essa cultura por dentro de torná-la inofensiva ao capitalismo, porém suas tentativas não obtiveram um sucesso grande, pelo menos não comparando com o que eles conseguiram no início dos anos 2000, onde eles finalmente conseguiram prostituir quase por completo a cultura Hip-Hop, injetando na indústria inúmeros artistas comerciais sem talento algum e fazendo esses grupos “explodirem nas paradas”, como eles mesmos dizem.

Ainda bem que com o passar do tempo esses artistas começaram a cair em descrédito poucos anos após aparecerem repentinamente na mídia, enquanto o rap underground dos EUA continua forte e resistindo bravamente á essas investidas.

Esse é um bom exemplo de apropriação cultural. Uma coisa muito importante de se notar é que quase todos esses artistas comerciais eram NEGROS, isso facilitava pra indústria inserir a ideologia burguesa na cabeça dos negros norte-americanos. Logo, se enganam aqueles que afirmam que algo só ganha grande repercussão quando seus sujeitos são pessoas de pele branca. No caso do RAP, ao menos, esta não é uma verdade, apesar de muitos tentarem fazer essa afirmação.

Pra encerrar gostaria de deixar bem claro que nenhum marxista irá querer criar exclusividade étnico-racial para uso de roupas, apreciação e criação de obras artísticas visuais e musicais. Isso nós deixamos para as confusões dos racialistas, com suas lentes embaçadas, que só conseguem ver a história através do prisma da raça. O desejo dos marxistas é que um dia TODOS OS POVOS do mundo possam fazer um livre intercambio cultural, uma verdadeira UNIVERSALIZAÇÃO DA CULTURA, livre de influências e imposições imperialistas.

 





[1] Aqui poderia se explicar melhor como o capitalismo fomenta o racismo e o usa para se manter e para garantir os interesses da classe dominante, mas há diversos textos que podem tratar do assunto de forma mais profunda do que seria o caso aqui.
[2] Importante lembrar, apesar de não ser o tema da discussão aqui, que esse é majoritariamente um setor branco.
[3] Ainda que algumas dessas mulheres fossem oriundas dessa classe.
[4] Aqui é interessante pensar na discussão sobre como a simples auto-identificação como negro é um símbolo que pode organizar resistência, e por isso surge a ideologia da miscigenação, de que os negros de pele clara não são negros, mas morenos, pardos, etc.
[5] É importante lembrar que a capoeira, particularmente, é um elemento cultural negro que se deslocou quase completamente dos espaços negros para academias predominantemente brancas.
[6] Isso vale centralmente para as mulheres, que sofrem uma opressão muito específica relacionada com as roupas que vestem.

sábado, 22 de agosto de 2015

Quem fica com a travesti?

(TW: solidão trans, novamente)


Hoje falei para uma amiga como acho interessante uma conhecida em comum.
Ela foi muito simpática e conversamos um tanto sobre.
Em algum momento, essa amiga me disse:
"O problema é que ela é super hetera"

Com isso, queria dizer que provavelmente a pessoa em questão não teria interesse por mim.
Nada mais natural. Afinal, tenho uma expressão de gênero feminina.

Mas essa "naturalidade" poderia ser igualmente inferida a partir do argumento exatamente oposto.

É igualmente natural que alguém não fique comigo porque "só fica com mulheres".

(E, ironicamente, a mesma naturalidade pode aparecer se a pessoa em questão "só fica com homens ou com mulheres").

As orientações sexuais predominantes ignoram a existência de travestis.
Ou seja, para qualquer uma dessas orientações, é natural não ficar com travestis.

As travestis, quando dignas de afeto, são sempre essencialmente amigas.
São naturalmente desprovidas de desejo, de libido, de sexualidade. É natural que não sejam desejadas, amadas.
É natural que não se queira ter relações com elas.

As justificativas são várias. E todas verdadeiras.
Considerando o estado atual de coisas, considerando a forma como as pessoas encaram suas orientações sexuais, todos têm motivos bastante fortes para não ficar com travestis.

Travestis não são homens.
Travestis não são mulheres.

Simples assim.

Condenam-se as travestis à solidão.
Mas todos têm seus gostos individuais. Que são seus. Que não se discutem.
Se ninguém deseja a travesti, o que se pode fazer, não é mesmo?

--

Sorte a minha que não aceito o estado atual de coisas.
E que me meto a aquendar, me meto a desejar - homo, hetero, bi, não me importa - e me meto a ser desejada. Sim, atrevo-me.
Importar-me com a orientações sexuais seria resignar-me e aceitar a solidão.

E sorte a minha que, mesmo que a invisibilização e a discriminação estejam bastante firmes em cada pessoa que cruza o meu caminho, tenho jogo de cintura e libido para desafirmá-las. E que me faço desejar, apesar do vazio de desejo que impõem sobre mim. E que minha vida contagia.

E que a vida, contagiando, desconstrói cada distanciamento, cada preconceito, cada naturalização que colocam em mim.

Vem ver essa vida. Se contagia também. Vamos desconstruir juntes.
Vem comigo?
^^

terça-feira, 26 de maio de 2015

Sobre ciúmes em uma relação aberta

Tenho relacionamentos poli há quase dez anos, entre eles uma relação de sete anos com um "casamento" de um ano. E acho que, para a gente saber lidar bem com esse tipo de relação, é importante não cair em um discurso moralizante que há dentro do poliamor, de que as relações e os sentimentos devem se dar dentro de um determinado molde. Sentir ciúmes é completamente normal no mundo em que vivemos. Nós somos criadas e ensinadas a isso a vida toda, e não é por um ato de vontade que vamos parar de senti-lo. É algo que está dentro de nós e que só pode mudar a partir de experiências genuínas de relações de companheirismo e cumplicidade.
Sentir ciúme não é algo atrasado ou retrógrado em si, e não deve despertar culpa. É um sentimento tão legítimo como qualquer outro e as pessoas que querem trabalhá-lo para mudá-lo devem fazer isso respeitando a si mesmas, respeitando seu espaço e seu tempo.
Mas, quando se está em uma relação, esse respeito tem que ser compartilhado pelo companheiro também. Tem que existir algum nível de cumplicidade e de responsabilidade sobre os sentimentos daqueles com quem se relaciona. Não faz sentido uma relação aberta em que o homem faz o que quer sem se importar em como aquilo repercute nos sentimentos de sua companheira. Esse tipo de relação “poliamorista” é tão atrasada como qualquer relação tradicional.
O ciúme é algo que acontece. Em todas as relações que tive, diversas vezes e por diversos motivos surgiram ciúmes, da minha parte e da parte de minhas companheiras e companheiros. E é algo que podemos conversar sobre e pensar em o que fazer para que fiquemos bem (aqui parto do pressuposto que as relações devem servir para nos fazer bem, para nos fazer felizes; e não simplesmente seguir um modelo ideal, seja mono ou poli). Numa relação, principalmente uma relação não mono, onde estamos construindo algo novo, que não há um modelo já socialmente estabelecido, é fundamental que haja espaço e companheirismo para que se coloque o que se sente, o que alegra e o que machuca. É preciso haver espaço, inclusive, para que se recuem em propostas de não-monogamia em alguns momentos se essas propostas causarem algum desconforto que seja muito difícil lidar (lembrando que o objetivo é ser feliz, e não construir uma relação poli ideal).
Na maioria de minhas relações, tive um acordo de que ficaríamos com quem quiséssemos, quando quiséssemos. Mas diversas vezes, antes de ficar com alguém, já perguntei a minhas companheiras como seria para elas se eu o fizesse, e muitas vezes deixaria de fazê-lo se fosse machuca-las. Da mesma forma, já coloquei para elas coisas que me machucaram em função dos ciúmes que eu sentia. E é importante que seja possível conversar e chegar a um ponto de consenso, sobre o que seria melhor para ambas. Algumas vezes podemos assumir que vai rolar a outra relação e que nos ajudaremos a lidar com o ciúmes uma da outra; outras vezes assumir que seria melhor que essa outra relação não role. É uma questão de cuidado. E nem sempre conseguimos conversar e elaborar isso da melhor forma possível todas as vezes; mas acho que vale a pena ter disposição e ir aprendendo a ter esse tipo de diálogo.
E só essa cumplicidade e abertura para lidar com os sentimentos de forma bastante sincera foi o que me ajudou a lidar com os ciúmes e avançar em relações não mono. Se se estabelece uma relação em que uma pessoa não sabe o que a outra sente, em que não há esse companheirismo para que se possa chegar para o outro e perguntar de forma aberta qual a relação dele com aquela outra pessoa que ele está ficando, se as coisas ficam meio incertas e inseguras, acho bastante provável que se esteja estabelecendo uma relação opressora.
Principalmente em uma relação entre homem e mulher, e mais ainda em uma relação não mono, é obrigação do homem compreender e proporcionar um ambiente de segurança à mulher. Caso contrário, se reproduzirá, ainda que de uma forma um pouco diferente, o velho machismo que há nas relações tradicionais, que coloca a mulher em uma posição de submissão por se sentir insegura na relação.
É importante que se saiba (e principalmente nós mulheres) que sentir ciúmes, ficar insegura e todas essas coisas não são nossa culpa, não são coisas de que nós temos que ter vergonha, e não são coisas que temos que resolver sozinhas. Esses elementos todos acontecem na relação e é necessário que existam espaços para que se lide com eles de forma companheira, claro que também respeitando as individualidades de cada um quando for necessário. Ciúmes, assim como todo sentimento, é algo que se conversa sobre em uma relação íntima saudável.
Tem muitas coisas nos nossos sentimentos que podemos mudar com experiências. Como eu disse, já senti muito ciúme, e a forma como sinto ciúmes mudou muito desde que comecei a ter relações não mono (e essa mudança foi uma experiência fantástica, que ainda vou escrever especificamente sobre). Em função de minhas experiências de construir conjuntamente a vida com algumas pessoas e de compartilhar sentimentos bons e ruins, algumas situações que me dariam muito ciúme e que me fariam ficar muito mal hoje são bastante prazerosas. Ver minha companheira feliz com uma outra namorada ou namorado que a faça feliz é algo que às vezes ainda desperta algum incômodo, mas, de forma geral, me dá sentimentos muito bons e felizes.

sábado, 9 de maio de 2015

Da solidão da travesti que gosta de meninas

(TW: solidão trans*)



Hoje acordei e não sabia bem onde estava
Vi que meu corpo estava em minha cama
        Mas eu não estava lá.
Eu então vi que eu não estava em lugar nenhum.

Sempre brinquei tanto com o desejo
O desejo me era amigo, íntimo, companheiro
E agora
        Desejo, para mim, é nada mais que uma lembrança longínqua
Me sinto assexuada em meio à multidão libidinosa

Quem é que iria me querer?
Não tenho aquele masculino que atrai as moças que gostam de meninos
Também não há em mim o feminino que desejam as que gostam de meninas

--

Cansada de ser eu...
Aliás, quem sou eu, quem poderei ser?
        Se não posso ser senão junto
        Se minha história é a história de meus amores
        Se me encontro em cada encontro em meu caminho
Quem poderei ser se sou só?
Fico vazia de mim.

Eu, que sempre esbanjei libido
Me castro diante do desejo dos outros
        Que afirmam, com razão, como sou linda
        E maravilhosa, e até sexy
Mas é um sexy que só desperta desejo nos outros
        E esses outros ainda não encontrei

        (O desejo não vem senão daqueles que aprenderam, vez ou outra na vida,
        Que só sou objeto superficial e carnal,
        Mas não digna de uma relação, de afeto, de amor)

Eu, que sempre tive relações tão próximas,
        Que sempre tive trocas profundas
        Com todes que passaram por minha vida
        Eu, que amo tanto amar profundamente,
Encontro-me de repente procurando sexo
        Só sexo, sem sentimento, sem troca, sem nada. Só para poder sentir-me um pouco desejada.

E vejo-me fechando ao mundo
Não brincando como sempre brinquei
Não amando como sempre amei
Não sou mais eu
        Perco minha libido
        Perco meus encontros
        Mais uma vez na vida, mal posso conversar sem medo

Esse medo me domina
        Fico só. Com medo. Um medo só.
        E de repente o que fica é só o medo.

--
 
        Não queria ter dormido
        Não queria ter acordado.
O medo da vida agora se mistura com quem eu sou.
Meu gênero se confunde com a solidão.

Queria ainda não saber onde estou. Mas agora vejo bem.
        Estou aqui.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Alegria

Hoje me peguei cantando alto na rua
Andando com a cabeça alta
        Seguindo e força e a música
E dançando pelos trens do metrô

Tenho aprendido sobre a vida
Minhas amigas e meus amigos
        Estão aqui de volta
E tenho companhias para a vida
        Que estarão sempre comigo
E encontros de poucos dias
        Incríveis, que mudam tudo

Quando me abro ao mundo
O mundo me permite conhecer
        A mim mesma
Nas diversas pessoas e poesias
        Que cruzam meu caminho

Alegria

Sobre a violência desse mundo



Hoje quando penso em você só consigo pensar em como a violência desse mundo se reproduz. Só consigo pensar em como são distantes aquelas relações que deviam ser as mais próximas; em como não se pode confiar nas pessoas em que mais se confia. Penso em como a violência que se expressa de forma explícita em alguns poucos momentos percorre nossos sentimentos, nossos corpos e nossos amores silenciosamente em tanto tempo da vida. E não posso deixar de pensar em como esse mundo violento, com suas relações violentas, nos ensina que que amar é, em si, violento.
Hoje quando penso em você só posso pensar como a violência está em cada canto e em cada momento. E como, quando nos esforçamos para fugir dela, damos com ela novamente. Só consigo pensar que, acreditando fugir da violência desse mundo, buscamos o amor e fugimos dele, gritamos e nos silenciamos. E o que quer que façamos a violência sempre parece estar lá.
Hoje não posso não pensar que, fugindo da violência, somos nós que a reproduzimos em nossas relações; que, tentando nos proteger somos nós violentos com nossos amores.

Estive certo de que o amor, que é junto, seria páreo para a violência, que é só. Mas a violência foi tanta que não pude saber lidar. E quando busquei algum amor em ti, quando busquei algo qualquer que me pudesse ajudar a enfrentar a violência... Encontrei. Encontrei teu amor. Mas a própria violência já o havia dominado.
Não soube mais o que fazer. A ideia do teu amor me faz vencer a violência. Mas hoje não posso pensar no seu amor sem sentir a violência que ele me traz. O mundo me violenta, e assim o faz contigo. Nossas relações e nossos amores nos violentam.

Começo a sentir o medo da violência, que me faz também exercê-la. Começo a sentir o ódio. Sinto-me em sintonia com esse mundo violento, com essas relações superficiais, com esse amor odioso, mesquinho, distante, solitário.

Mas me recuso! Se não posso enfrentar a violência desse mundo porque me falta a vida que o amor traz, então escolherei definhar sob tal violência. Recuso-me a fazer parte dela. Recuso-me a me defender sendo ainda mais violenta. Recuso-me a reproduzir essa distância que as pessoas estabelecem entre si. Recuso-me a amar sem amor!
Dói, mas escolhi amar puramente, sem jogos, e sem entrar nessa estereotipia silenciosa e violenta.
Quando houver amor, quando houver o "junto" que pode dar alguma vida contra a violência desse mundo, estarei aqui, pequena, miúda, esmagada sob tanta violência, mas estarei aqui, me recusando a fazer parte dela e esperando que alguém mais também se recuse e possa dividir um pouco do amor, da força, da vida.
Hoje quando penso em você só posso sentir a violência desse mundo. Mas, sorrateira e malandra como é, às vezes a esperança de um mundo não violento aparece em um sonho (que parece cada vez menos distante)... E penso que, quem sabe, pode haver um amor sem violência.